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Crónicas

O Som do Silêncio

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Como melhorou a qualidade do som nos filmes portugueses! Lembro-me de que, ainda há não muito tempo, as fitas nacionais quase precisavam de vir legendadas. Ou então, que os espectadores fizessem cursos-relâmpago de leitura de lábios. Felizmente, hoje já não é assim. Agora só faltam os diálogos que valha a pena ouvir.

Claro, estou a brincar. Mas desde o início o som foi uma fonte de controvérsias na jovem arte cinematográfica. O cinema tornou-se sonoro, e depois falado, um pouco por acaso, porque a Warner se encontrava à beira da falência e tentou, como última cartada, uma experiência diante da qual as concorrentes recuavam, receando um desastre comercial. Bem, parafraseando o impagável produtor Samuel Goldwyn, ninguém gostou daquilo – excepto o público.

Sim, as platéias aderiram com entusiasmo à novidade, mas os cineastas e os críticos torceram os narizes. Pudovkin, Eisenstein e Alexandrov publicaram um manifesto contra o som, alertando para o perigo do «teatro filmado». René Clair também fez uma birra. Mas o mais amuado foi mesmo Chaplin: «Os filmes falados? Odeio-os! Vieram estragar a arte mais antiga do mundo, a arte da pantomima. Destroem a beleza do silêncio». OK, ele lá tinha as suas razões para achar que mais valia estar calado. É como observou mais tarde o mordaz Billy Wilder: «Quando Chaplin ganhou uma voz para dizer o que se passava na sua cabeça, foi como se uma criança pusesse uma letra na Nona Sinfonia de Beethoven».

Tratava-se, claro, de um lamentável equívoco: os mestres do mudo tomavam por trunfo o que não passava de uma lacuna. Às vezes, é verdade, a falta de som estimulava a criatividade de uma maneira cómica: no clássico «Napoleão», de Abel Gance, durante um ataque ao forte de Toulon pelas tropas franceses, todos os soldados que tocam tambores são instantaneamente mortos.
Logo se verificou que o sonoro exprimia melhor até o próprio silêncio. No sonoro, o silêncio adquiriu um valor positivo, de que estava privado na uniformidade taciturna do mudo. Assim, depois de, por exemplo, uma música retumbante, o súbito silêncio assume uma intensidade conceptual. Só o sonoro pode, por contraste, representar o silêncio sepulcral. Para não falar no minuto de silêncio (que, no mudo, eram todos).

É certo que estamos a falar de um realismo dúbio, isto é, na maior parte das vezes «pós-sincronizados», ou seja, registados em estúdio depois das imagens. Isso porque, devido aos caprichos da técnica e da física, uma parede, um vidro ou uma escada gravadas ao ar livre não produzem um som «autêntico». Por outro lado, há certos ruídos que já foram registados de uma vez para sempre: pode comprar-se, nas lojas da especialidade, um canto de galo, um bramido de ondas ou um coaxar de rãs. Só não se pode comprar é bons diálogos.

E há, naturalmente, a música. No cinema, a música pode assumir dois papéis: de ambiência ou contraponto (ou paráfrase). A primeira é, digamos, decorativa (não quer dizer que seja supérflua). A segunda pode tornar-se dramática. Se for de certos compositores que a gente sabe, tornar-se-á seguramente melodramática. Como disse o outro, a música japonesa é uma tortura chinesa.
Sem som e sem música, não haveria os musicais. E, sem os musicais (que, por ironia da história, brilharam na Metro e não na Warner), não haveria Fred Astaire. Bom, por causa de um bisonho executivo de Hollywood, que avaliou o primeiro teste do futuro maior bailarino da Sétima Arte, quase que não houve de facto Fred Astaire. Eis o veredicto da sumidade, quando Astaire acabou o seu número: «Não sabe representar. Ligeiramente careca. Dança um bocadinho».

Hoje, ninguém com cinco gramas de miolos duvida de que o cinema seja a imagem unida à palavra, ao ruído e à música. OK, cada macaco no seu galho. Frank Sinatra, por exemplo, embora tenha embolsado um Oscar de melhor actor secundário, continua a pertencer mais à música do que ao cinema. Ou, como alguém resmungou: «Tirem o microfone e a orquestra a Sinatra e o que é que lhe restaria? Trabalhar numa pizzaria!».

Crónicas

O Som e a Fúria

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Há poucos dias, eis que dei por mim na entrada de um descomunal centro comercial de bilhete na mão, lado a lado com uma entusiasmada criança de 10 anos, pré-adolescente quase, ambos prestes a embarcar na electrizante experiência de «Tomb Raider 2».

Estávamos mais do que preparados para suspender a descrença durante duas horas e pular a pés juntos para dentro do universo dos jogos de consola tornados película e admirarmos os contorcionismos e os seios digitalmente aumentados de Angelina Jolie. Mas havia uma coisa para a qual nada nos preparara. E essa coisa foi o som, a fúria, os dementes décibeis que atordoaram os nossos ouvidos com a tonitruante pujança dos canhões da guerra de 14-18 ou, mais contemporâneos, os mísseis Tomahawk das guerras do Golfo.

Era demais. A criança, apesar de tudo habituada ao cacofónico estrilhar de guitarras trash-metal, tapou os ouvidos durante dois terços do filme e, mesmo assim, saiu de lá seriamente candidata a uma consulta de otorrino. Eu, por outro lado, sentia estarrecido o aumento da minha pulsação e o corpo a vibrar como uma personagem do «ER» com o George Clooney. Por momentos, apeteceu-me mesmo procurar a campainha e chamar a enfermeira, antes que fosse tarde demais e a alma se separasse do corpo num esforço derradeiro de sobrevivência.

Cá fora, apreciando o silêncio das centenas de criancinhas debicando Happy Meals e fatias de pizza, pensei no que acontecera. O que levara as salas de cinema a superarem o nível sonoro de um concerto dos Sepultura? Por que obscura e satânica razão tinham os responsáveis das salas optado por reduzir os espectadores a cobaias de experiências acústicas limite? Pretenderiam eles que os filmes fossem ouvidos do espaço e atraissem assim novos públicos desde o segundo anel de Saturno?

A resposta surgiu-me mais tarde, após duas semanas de recuperação nas termas do Buçaco, com a clareza de uma epifania: Afinal, as clamorosos ondas de choque sonoras eram a resposta natural ao chinfrim do próprio público. Às conveue não padeçam de surdez crónica.

Todos nós já tentámos certamente fazer calar algum destes exemplares com este tipo de comportamento e desistimos. Quando conseguimos, foi com certeza numa das raras vezes em que o dito cujo (são normalmente homens, vá-se lá saber porquê) estava sózinho e era mais franzino do que nós. Em geral, este tipo de gente anda em manadas e tem a compleição de um condutor de máquinas pesadas. E, entre o ruído boçal e o silêncio eterno da campa, é natural que optemos pelo primeiro.

Mas, pese embora compreender agora a estratégia dos exibidores, continuo a achar que há limites. Devem existir outras formas de educação da plateia para além de destruir-lhes os tímpanos. Quando se leva uma criança de dez anos a desejar abandonar a sala, com medo que o texto lhe caia em cima da cabeça como os conhecidos gauleses, algo está errado. Aqui fica, pois, o apelo. Ou, pelo menos, o aviso. Para a próxima vez que derem por vós com vontade de apreciar um qualquer blockbuster, levem tampões de ouvidos.